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quinta-feira, 2 de abril de 2015

O CHAMADO

Wilson Horvath



A religião esteve fortemente presente em minha vida desde a mais tenra idade e me acompanha ao longo do tempo, colaborando com minha formação humana, cristalizando alguns pontos de minha personalidade e metamorfoseando outros. Em determinados momentos, ela me impôs seus dogmas; entretanto ela também me obrigou o questionamento, a reflexão, a negação de suas verdades.
A máxima medieval: “credo quia absurdum est” (Creio porque é absurdo) nunca soou bem aos meus ouvidos; ao contrário fui impelido a buscar conhecer o infinito, que na linguagem religiosa, o chamamos de Deus, mesmo tendo em mente que Ele continuará para sempre a ser um mistério aos nossos olhos, à nossa compreensão humana.
Não caminhei de forma passiva no universo religioso, mas ativamente, como um verdadeiro amante. E igualmente a todos aqueles que amam, experimentei os mais profundos êxtases, aconchego, proteção e sofrimento, desilusão, abandono, raiva.
E nessa relação de amor e de ódio, de colaboração e de enfrentamento, a religião marcou a minha identidade, condicionou o meu ser, mas por mim ela foi redesenhada à “minha imagem e semelhança”. Assim, o Deus eterno, incondicionado é cultuado dentro dos limites da minha existência, finitude, condicionamento. Sua imagem transcende ou retrocede de acordo com as transformações de minha percepção; todavia a incompletude de meu ser se abre ao Infinito e por ele é tracionado, modificando-me e alterando a minha forma de compreensão do real e, nesse sentido, de minha religiosidade.
Religião e eu travamos uma luta aos moldes daquela combatida por Jacó, figura bíblica, (Gênesis 32, 22 – 32), em que o patriarca luta com Deus a noite toda e O vence; mas diante da derrota, Deus permanece inalterado, enquanto o vencedor é ferido na coxa e se torna manco. E ao amanhecer, Deus o abençoa e muda o seu nome de Jacó para Israel.
O nome na Bíblia está ligado à personalidade da pessoa e revela os seus traços subjetivos, temperamento emocional, características físicas, sua posição em relação ao projeto divino para a humanidade. Por exemplo: o nome Jacó quer dizer: “aquele que vem no calcanhar”, alusão ao filho caçula, aquele que veio por último; e Israel significa: "o que luta com Deus" ou “Deus luta” ou “Deus lutou”.
A mudança de nome simboliza a metamorfose operacionalizada na identidade da pessoa, que embora seja o mesmo indivíduo, é um sujeito bem diferente daquele que o era. No caso do patriarca bíblico, ele deixou de ser o filho mais novo, aquele com menor direito à herança paterna para se tornar o grande pai do povo judeu, que nomeou o Estado judaico e marcou a identidade de todo o seu povo.
Para compreendermos o processo de transformação promovido a partir da relação, da luta, que estabeleci com a religião, adentremos em minhas lembranças de infância e tentemos localizar como foi se solidificando a imagem de Deus, essa que me impactou e me influenciou ao longo da vida, mesmo estando ela em constante mudança.
Nasci e cresci no interior baiano, em um ambiente marcado pelo misticismo católico, que sincretizava elementos da fé popular brasileira, trazidos das religiões indígena e africana, esses camuflados, com o cristianismo romano.
Minha avó materna, certa vez, contou que desde o meu nascimento, ela rezava comigo no colo e a partir do momento que comecei a balbuciar, ela insistia em fazer-me repetir as orações católicas. Assim, ainda muito pequenino, eu já conhecia de cor as principais ladainhas e as tagarelava aos quatro ventos. Tenho vagas lembranças de rezá-las para os vizinhos, parentes, amigos e, após proclamá-las, de receber elogios, que me faziam sentir uma espécie de “anjinho” de carne e osso.
Um pouco mais crescido, por volta dos sete anos, minha mãe levou-me para ser coroinha; ela mandou fazer uma batina (túnica), semelhante à roupa que o padre usava na celebração; contratou um fotografo para tirar algumas fotos de mim trajando aquela vestimenta. Então, praticamente todos os dias da semana, eu estava presente na missa, auxiliando o padre ou fazendo figuração.
Os elogios aumentaram, recebia-os inclusive de minhas professoras e da diretora da escola, que parabenizavam-me junto a minha mãe ou em sala de aula na presença de meus colegas de turma e me destacavam como um exemplo de criança e aluno a ser seguido. Diante desses fatos, defini qual seria o meu futuro precocemente: seria padre. Minha pueril decisão foi amplamente apoiada e admirada por todos que me cercavam: família, padre, educadores, amigos.
No entanto, uma pessoa não me apoiou e desaprovou por inteiro meus planos futuros, como também era de seu desagrado minha vivência na Igreja, meu pai. Para ele, homem não deveria usar “saia”, insinuação às vestimentas clericais, muito menos ser celibatário, mas ter uma esposa, constituir família, ter filhos.
Ele não era uma figura de referência direta para mim, mas indireta, ou seja, era um exemplo a não ser seguido; seu modelo de homem me serviu para estabelecer aquilo que eu não deveria ser, alguém que seria diametralmente oposto a ele.
Ele trazia em seu ser as marcas, os traumas consequentes da Segunda Guerra Mundial, pois meu avô paterno serviu no exército alemão e após o término da conflagração fugiu e entrou de forma clandestina no Brasil. Nos relatos de meu pai, meu avô havia sido muito violento com ele, tratando-o como um recruta ou um inimigo em combate.
Infelizmente, meu pai não conseguiu trabalhar internamente a violência sofrida e a despejava contra mim. Quase todos os dias, eu sofria agressões e em alguns dias era vitimado mais de uma vez; apanhava por todos os motivos ou sem nenhuma justificativa.
Ele com minha mãe tinha uma relação muito conturbada, com várias brigas. Nas discussões ou falar a respeito dele, ela o chamava de “o coisa”, uma expressão para se referir ao demônio, mas que ao seu entender poderia ser dita, pois não estaria invocando o diabo. Além disso, ele também era desonesto com as pessoas, em seus negócios e odiava os pobres.
Não precisei ler Dante Alighieri, para formular a minha concepção de Inferno. O demônio era muito ruim, fazia muitas maldades, agredias as pessoas fisicamente por meio de chibatadas e psicologicamente por meio de xingos, humilhações, menosprezos.
Concomitantemente, criei minha concepção de céu de minha infância. No altar da igreja que eu frequentava havia uma pintura de Deus, que sustenta uma cruz de madeira, com uma estátua de Jesus crucificado; o afresco apresentava um homem senil, de cabelos e barba esbranquiçados, mas forte e robusto. Por muito tempo, achei o Deus ali desenhado era o meu avô materno.
Meu avô era um camponês, alto, forte, de estrutura corpórea esculturada pelo trabalho árduo da vida no campo. Ele era muito honesto, se gabava pelo fato de nunca ter dado um prejuízo em alguém; gostava de ajudar as pessoas, em especial os mais necessitados. Ele era muito devoto de São Sebastião – Mártir católico, morto à flechada, amarado em uma árvore – e de Nossa Senhora Aparecida, de quem gostava de contar os três milagres dados nos momentos de sua aparição: peixes para o sustento dos pescadores, libertação das correntes que aprisionavam os escravos e queda do capataz do cavalo, esse que corria para capturar os escravos fugitivos.
Meu avô era muito bom comigo, dizia coisas boas para me agradar; gostava de me apresentar aos seus amigos e falava que eu seria padre; me levava à escola e à igreja; comprava lanche na quitanda; fazia doce de leite, de amendoim, de goiaba, queijo.
Para completar a trilogia dantesca, em minha casa havia um quadro de Nossa Senhora do Carmo com o menino Jesus no colo e com vários anjos aos seus pés. Ela estava no purgatório, tirando as almas daquele sofrimento e as conduzindo ao paraíso. Para mim, a santa representada era a minha mãe.
Minha irmã tinha sido anjinha, participando da celebração de coroação de Nossa Senhora Aparecida, algumas vezes. Nós dois quando crianças procurávamos naquele quadro, qual dos anjos era mais parecido com ela. E por fim há um outro personagem sagrado, que fez parte de minha infância, Santa Bárbara, protetora contra tempestades, raios e trovões, essa a identifiquei com minha avó materna.
Nesse trama familiar se deu minha primeira infância. Durante o dia, vivia como um “padrezinho” e à noite, rezava até adormecer por medo de fantasmas e do demônio. E, assim foi até a puberdade, momento em que resolvi deixar de lado a vocação clerical, devido aos encantos das mulheres e por uns quatro ou cinco anos, namorei algumas meninas.
Porém, por volta dos dezesseis anos, fiz um encontro de jovens de três dias e noites em um sítio isolado da cidade. O padre, que pregou no encontro, apresentou Jesus de uma forma que eu nunca tinha ouvido falar. Em sua pregação, Jesus viveu em prol dos pobres, ajudando-os e combatendo aqueles que os oprimia. Jesus também apresentava uma nova imagem de Deus, essa não era aquela que castiga e exigia sangue, conforme o relato bíblico do sacrifício de Isaac por seu pai Abraão a pedido de Deus (Gênesis 22, 1 – 14), mas o Pai Celestial era o ÁBBA (אבא), que quer dizer: Pai, Papaizinho, nome carinhoso usado para se referir ao genitor ou ao avô. No último dia de encontro, o padre disse que a missão da Igreja era dar continuidade a missão de Jesus, ou seja, estar a serviço dos pobres e anunciar ao mundo Deus como ABBA. E convidou os jovens presentes a serem futuros padres, a fim de darem suas vidas para concretizar o legado deixado por Cristo.
Alguns amigos e eu saímos desse encontro muito empolgados com a ideia de sermos sacerdotes e esse foi o assunto de nossas conversas por meses. Com o passar do tempo, meus amigos desistiram de serem padres, mas permaneci com esse desejo e participei de outros encontros, com o objetivo de me aprofundar naquela vocação.
Havia apenas um detalhe que me punha em dúvida em relação à minha vocação sacerdotal: as mulheres. E a indefinição não adivinha de conceitos entre o certo ou errado, conforme meu pai apresentava em minha infância, mas desejos internos, impulsos fortíssimos.
Na indecisão entre a vida clerical e leiga caminhei por dois anos. E após concluir o Ensino Médio, prestei dois vestibulares, um para psicologia em uma instituição pública e outro para filosofia no intuito de ingressar na vida religiosa; fui aprovado nos dois e optei pela primeira. Porém, em uma noite, o padre, que pregou o retiro, foi à minha casa, conversamos até altas horas da noite e no dia seguinte, minhas malas estavam prontas para acompanhá-lo ao seminário. E lá permaneci por mais de uma década.
Minha estada no seminário não foi tão cruel como a de Bernardo Guimarães, essa imortalizada de forma romancista em sua obra O Seminarista. Tive boas e más experiências e encontrei todos os tipos de pessoas, algumas extremamente boas e outras capazes dos atos mais insanos.
Minha experiência de vida no interior da Igreja se deu em um ambiente que respirava os ares da Teologia da Libertação e do humanismo, circulando livremente entre várias correntes teóricas, do pensamento clássico grego ao modernismo; líamos, refletíamos e discutíamos sobre os mais variados pensadores, tais como: Marx, Nietzsche, Freud, Sartre.
Esse ambiente de liberdade intelectual se chocava com a hierarquia e pensamento eclesiástico. Na Igreja há uma disputa de objetivos antagônicos, de um lado o carisma, o desejo de atuar e evangelizar conforme fizera Jesus, e do outro lado o poder, a preocupação com a influência política da Igreja no mundo, bem como seus bens matérias.
Outra contradição evidente da Igreja se refere ao celibato, mas aprendi informalmente, que poderíamos quebrá-lo vez ou outra, desde que isso não fosse descoberto e gerasse escândalos entre os fiéis ou que atrapalhasse a missão que nos propúnhamos. Esse pensamento não se dava de forma unânime entre o clero, e alguns padres não se importavam com nossas “escapadas”, entendiam que isso nos ajudaria a decidir melhor entre ser celibatário ou não; outros prezavam muito pela nossa vivência do celibato.
Descobri com isso que os padres mais moralistas, aqueles que mais se preocupavam com a vida sexual de outrem, tendiam a ser os que mais tinham problemas nesta área, se podemos chamar isso de um problema. Havia uma clara contradição entre o que se falava e o que se vivia.
Essa contradição entre o que se falava e o que se vivia se estendia às outras questões, como por exemplo o combate da pobreza, pois nem todos os clérigos que defendiam com palavras uma Igreja voltada para as questões sociais tinham uma prática de vida condizente com seus discursos. E padres ligados a uma teologia mais conservadora e tradicional, poderiam ser abertos às questões sociais.
Entretanto, embora houvesse uma brecha em relação ao celibato, na maior parte de minha vida religiosa, ele foi cumprido. O altíssimo desejo sexual ora foi reprimido ora sublimado por meio dos estudos. Assim, a paixão pelos livros se sobrepunha aos desejos da carne e fui impelido a buscar o saber, o conhecimento, conforme um amante que procura todas as maneiras de conquistar a pessoa amada.
E tornei-me um filósofo, obviamente não no sentido de ser um grande pensador, mas por ser uma pessoa marcada pelo páthos (πάθος: admiração, espanto, excesso, indignação, revolta, paixão, sofrimento), que move o meu ser em busca da verdade e ajuda-me a construir e trilhar caminhos de vida.
Era um admirador, seguidor, crítico e inimigo de cada filósofo que estudei. Incorporava alguns pontos de suas teorias, questionava e refutava outros. A paixão filosófica também fez com que eu colocasse em xeque os dogmas católicos e as verdades religiosas ensinadas por minha família. Dessas algumas foram mais difíceis de ser transpostas, como por exemplo: o fato de a Bíblia ser escrita em linguagem simbólica; outras foram facilmente negadas, como a não existência de um personagem que personificava o mal, o diabo ou demônio.
Minha formação acadêmica se construiu diante do desejo de conhecimento; um conhecimento que poderia iluminar minha práxis a fim de que pudesse contribuir de alguma forma para a construção de um mundo melhor. Assim, cursei a faculdade de Filosofia, dentre outros fatores talvez por uma concepção iluminista, acreditava que o conhecimento e a verdade poderiam libertar o ser humano da servidão, da escravidão. E fiz o curso de Teologia, por fé no Deus que tirou o povo da servidão do Egito e o conduziu a uma terra que mana “leite e mel”.
Sou ordenado presbítero, e fui trabalhar com o povo de Deus, aqueles que são os excluídos pela sociedade. Minha vida como padre foi marcada por um extremo sofrimento dentro da Igreja devido a dois fatores. O primeiro se deu devido ao fechamento da Igreja às questões sociais e sua volta à grande disciplina. O segundo foi fruto da relação estabelecida com meu superior, o bispo diocesano, que por ironia do destino foi o mesmo padre que me levara ao seminário; fui por ele massacrado psicologicamente, ouvia diariamente todos os tipos de humilhações e assédios morais, em especial devido à minha opção pelos pobres e pela negação de uma fé de aparências, descolada da realidade social. Essas ensinada por ele uma década antes.
Porém, se houve sofrimento intramuros da Igreja, houve muita alegria junto ao povo de Deus. Eu trabalhava quase que vinte horas por dia. E conseguimos muitas coisas, tais como: creches e escolas para as crianças; postos de saúde e um pequeno hospital; várias cooperativas para aumentar os ganhos dos trabalhos e consequentemente diminuir a sua exploração; firmamos parcerias com o governo federal e mandamos vários de nossos jovens para as universidades...
Por três anos exerci o sacerdócio até que dois dias antes da festa da páscoa, fui surpreendido por uma emboscada a mando de grileiros e garimpeiros. Os jagunços dispararam contra meu carro 72 tiros.

Enquanto, as balas entravam em meu corpo, ouvi uma linda orquestra angelical.... Deus, com um lindo sorriso e um semblante idêntico ao de meu avô, pegou-me pela mão e chamou-me para a morada eterna.

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